O Repertório padrão contemporâneo: Fugir

Em primeiro lugar, aparentemente, não é fácil tentar resolver uma equação enquanto se masca um chiclete. Assim como também é difícil viver em função do que poderá acontecer, sem dar a devida atenção ao que de fato está acontecendo. E este é um padrão de fuga comum, uma ação que representa um padrão de comportamento baseado em evitação, geralmente relacionada a algum tipo de temor que desencadeia ansiedade, o que, por sua vez, provoca a ação de fugir, e seleciona esse comportamento como padrão em situações desconfortáveis.

Ou seja, o padrão da sociedade que tem sido prevalente, é fugir antes de sentir a dor, ou o sofrimento, e simplesmente não lidar com aquilo que é potencialmente aversivo. Todavia, isso não permite que o ser humano desenvolva suas aptidões, amplie sua gama de habilidades, e é nesse ponto que, em termos de repertório comportamental, faz-se importante criar formas de se autoconhecer, e a partir disso, desenvolver habilidades para refinar pouco a pouco a capacidade de agir perante o incômodo, tanto para superar os sentimentos e sensações desencadeadas por este, quanto para ampliar novos modos e formas de existir que permitam ao ser humano uma vida mais significativa, e até mesmo feliz.

Repertório Variado: Uma ‘Questão de Tempo’

Analogamente, também se torna difícil fugir do padrão, sair da lógica de fuga, justamente por não haver um repertório variado, pelo ser humano se tornar muitas vezes rígido. E à medida que o tempo passa, vai se tornando mais difícil, porque não há segunda chance nem volta no tempo. Nessas horas ser o personagem Tim do filme ‘Questão de Tempo’ viria bem a calhar. Certamente seria tentador voltar no tempo e tentar modificar o que deu errado para não ter de lidar com as consequências destes atos, do que seria fugir deles a todo e a qualquer preço.

Mas, assim como a culminante/interpretação final do filme, não é possível voltar no tempo, a menos que se encare cada dia como se este fosse oriundo de uma volta no tempo hipotética, onde todo e qualquer estimulo presente tem valor a partir do modo como agimos e reagimos sobre o que acontece durante o dia. Nesse sentido, a vida bem vivida se refere tanto aos modos de agir e reagir, como também a nossa capacidade de repertório para poder ter uma grande variabilidade de possibilidades de ação a partir destes modos. Igualmente, isso significa se inserir em contextos diferentes, mesmo aqueles que despertam desconforto, e aprender os mais variados tipos de formas de agir em diversos contextos a fim de refinar cada vez mais suas respectivas habilidades.

 

Ampliação de Repertório: É preciso novos contextos

Se um indivíduo tem dificuldade de falar em público, ele precisa se inserir em contextos que propiciem a ocasião para que este possa desenvolver essas aptidões. Os problemas diante desta inserção supracitada são os sentimentos, a ansiedade, e também as regras que regem o comportamento potencial de fuga a partir das contingências as quais ele é exposto, e nisso, um processo de psicoterapia pode auxiliar para que o indivíduo desenvolva recursos para lidar com essas questões, como bem ressalta Delitty (1993) quando diz que “O papel do terapeuta será o de criar condições para que seu cliente chegue à discriminação destas contingências e assim se torne um observador mais acurado de seu próprio comportamento”.

A partir do momento que adquire esta habilidade, o indivíduo estará mais apto a modificar seu comportamento e/ou ampliar seu repertório. Porém, de nada vai adiantar se este não ampliar seus ambientes de vida, seus vínculos e suas relações que permitam que o indivíduo discrimine os comportamentos mais adequadas, e os desenvolva pouco a pouco, construindo assim um repertório comportamental mais amplo.

 

Definição do que é Repertório Comportamental

Por repertório, entende-se as possibilidades potenciais de um indivíduo agir de determinada forma, e isso está intimamente interligado ao contexto em que essa ação ocorre. Segundo Catania (1999, pág. 420), “Na medida em que algumas respostas do repertório são mais prováveis do que outras, um repertório consiste de uma hierarquia; os procedimentos operantes modificam as posições relativas das respostas na hierarquia”, o que significa que, em determinados contextos, existe uma maior probabilidade de que uma ação específica ocorra de acordo com as condições e estímulos do ambiente.

Por exemplo, em uma prova, espera-se que um individuo emita comportamento de escrever, ler, e seria pouco provável esperar que este mesmo individuo começasse a cantar na mesma situação. A partir dessa noção que se vale o conceito de hierarquia, onde, nessa situação, o comportamento de escrever é mais provável do que o de cantar, por exemplo. Porém, o modo, as técnicas de escrita, as maneiras de raciocinar ou concatenar os pensamentos, a expertise de ter vivenciado outras situações de prova, poderiam compor, dentro dessa hierarquia, um repertório comportamental – em tal contexto – mais amplo, mais vasto, o que representaria uma maior possibilidade de êxito nesta hipotética prova, comparado a quem teria um repertório mais restrito nas mesmas condições de acordo com a hierarquia demandada.

 

Sofre menos quem tem um Repertório mais amplo

E o que é válido para uma prova, é válido para diversos aspectos da vida. Porque, como disse Tatiana Lussari (Citada por Zortea, 2013) “sofre menos quem tem um repertório mais amplo”, e não apenas isso. Vive de modo mais significativo, quem não se limita a poucos aprendizados. O personagem Tim do filme, teve a possibilidade de viajar no tempo e mudar as situações em que ele errou, ou “deu mancada”, ou mesmo feriu alguém indiretamente. Mas, no final, ele percebeu que, simplesmente não era preciso mais voltar no tempo.

E isso porque o próprio desafio de uma situação irrepetível é melhor que a possibilidade de correção de eventos passados, desde que o ser humano reconheça o devido valor daquele dia, das pessoas que ele ama, e de todos os pequenos elementos que tornam a vida mais empolgante, a partir do dinamismo, da atitude, e principalmente, do humor parente tudo aquilo que possa ser aversivo. Sempre vão existir contas pra pagar, doenças, términos de relacionamentos, e todo tipo de tensão para ter de lidar. Todavia, também existe a infinita capacidade de escolha humana, e como reagir de modo descontraído a tudo a partir desta. Porém, isso perpassa por um repertório amplo, e pelo reconhecimento e autodescoberta do indivíduo, para que este reconheça que aquilo que ele pensa não é necessariamente infalível, e que a fuga não é um caminho.

 

Como parar de fugir, inclusive de si mesmo (parte 1)

E a resposta para a solução dessa fuga frenética é relativamente simples, e está na postagem sobre Repertório Comportamental do site Comportamento e Sociedade de 2013, que é: “Leia filosofia, leia literatura. Leia Kafka, Dostoievsky, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues, Clarice Lispector, C. S. Lewis, Rubem Alves e tudo o que puder. Vá ao cinema, saia de casa! Assista filmes dos mais diversos (não só os hollywoodianos!). Ouça música, os mais diferentes estilos. Aprenda a tocar algum instrumento musical. Cante, não só no chuveiro, mas com pessoas também! Se possível, aprenda a ler partitura.

Aprenda idiomas. Vá a museus, observe as formas das telas, as texturas, cores, as fotografias. Tente pensar no que o artista sentiu ao compor sua arte. Vá a shows, concertos, apresentações teatrais. Faça aulas de teatro! Assista apresentações de dança, desde o balé clássico ao street dance. Aprenda a dançar! Escreva cartas (não só e-mails), tire fotos na câmera analógica, faça desenhos e projetos. Pratique esportes, corra! Tome banho de cachoeira, de praia, de rio, de lagoa, de piscina, de mangueira. Chame os amigos para ir à praia, faça castelos de areia, enterre-se nela (tal como fazem os mineiros na Praia da Costa-ES – risos!), tome caldos!

 

Como parar de fugir, inclusive de si mesmo (parte 2)

Conheça outras culturas, outras comidas, outras bebidas. Visite uma aldeia indígena, uma comunidade rural, veja como fazer uma horta. Aprenda a cozinhar com a família, com os amigos. Responsabilize-se pela refeição em alguns dias da semana. Faça piqueniques no parque da cidade com os amigos e, estando lá, chame pessoas que você não conhece para participarem. Sinta os diferentes cheiros e aromas dos temperos e alimentos. Vá à feira no sábado de manhã. Observe, converse, pergunte, faça piadas, ria. Se for possível, viaje, conheça lugares diferentes; conheça pessoas, diversas pessoas; converse com todos, até com quem você não quer conversar (a coisa mais fácil e confortável do mundo é não fazer o que não se quer fazer); brinque com crianças, aprenda sobre seus brinquedos, assista seus desenhos animados, peça suas interpretações.

Coloque-se no lugar do outro; faça o trabalho de alguém por um dia; seja gari por um dia; trabalhe como garçom, servindo às pessoas; experimente diferentes trabalhos. Faça trabalhos voluntários, visite asilos, ouça quais são as trajetórias das pessoas que estão lá! Visite orfanatos, novamente brinque com as crianças. Ensine a fazer brinquedos recicláveis (Zortea, 2013)

Expanda sua vida, saia da zona confortável! Talvez não esteja listado aqui nem um por cento do que é possível na vida! Há muito o que fazer! […] (Zortea, 2013).

 

Conclusão

Por fim, muitas vezes é difícil saber qual o primeiro passo a dar para romper um padrão de comportamento e obliterar uma regra disfuncional. Todavia, é algo muito particular e remete às características idiossincráticas de cada um, seu modo particular de existir, sua essência fundamental. Este autor mesmo, particularmente, vai tentar se apaixonar por mulheres chamadas Mary que usam franja.

 

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Referências

Catania, A. C. (1999). Aprendizagem: comportamento, linguagem e cognição. Porto Alegre: Artmed. (Trabalho original publicado em 1998).

Delitti, M. (1993). O uso de encobertos na terapia comportamental. Temas em Psicologia, 1(2), 41-46 .

Zortea, T. C. (2013, Agosto 5). Notas sobre repertório comportamental. [Web log message] Recuperado de: http://comportamentoesociedade.com.

Repertório Comportamental: Pare de fugir de si mesmo